Com imensa alegria inauguramos o espaço digital “Saberes em Rede”. Este ambiente foi criado para compartilhar alguns estudos e reflexões geradas no decorrer das diferentes etapas do projeto “QUENUAL – TRAJETÓRIA E CRIAÇÃO”, contemplado pela 31a edição do Programa de Fomento à Dança para a cidade de São Paulo.

Desenvolver ações voltadas para o compartilhamento das nossas pesquisas, é uma das premissas da Cia Pé no Mundo, que ao longo do seus 10 anos de trajetória oferece periodicamente Grupos de Estudos exclusivamente dedicados a troca de experiências, reflexões e referências em diversas temáticas que envolvem o corpo, linguagens artísticas e as relações raciais no Brasil e no mundo.

Nesta edição, realizaremos gratuitamente seis encontros teórico-práticos abertos ao público inscrito. Os encontros, que terão independência entre si, acontecerão em diferentes locais da cidade de São Paulo, propondo, justamente, uma rede de saberes itinerante.

Assumindo o reverberar dos tempos pandêmicos onde as noções e concepções de estarmos juntos estão totalmente alteradas, nos debruçamos sobre pensamentos cosmológicos para nos entender novamente nesse contexto coletivo, e optamos também por compartilhar nossos estudos numa dimensão digital. Assim, possibilitando ainda mais acesso às reflexões verbais/corporais engendradas neste projeto.

No entanto, como sempre inspirados pela potência das manifestações culturais afro-indígenas brasileiras, o título dos nossos estudos compartilhados, não se relaciona somente com as questões que envolvem nossas relações no universo digital. Estamos pautando e evocando outras tecnologias, estratégias ancestrais que perpetuamente nos ensinam como experienciar o mundo coletivamente.

Tomemos a manifestação cultural “Puxada de Rede” como um excelente exemplo. Onde reunidos em volta do material de trabalho – a rede também confeccionada coletivamente – os trabalhadores entoam seus cantos e juntos conquistam o alimento para a comunidade e a mercadoria de troca/venda que garante a manutenção de determinado povoado.
Neste sentido, nasce “Saberes em rede”. Território onde buscamos “alimentos” para abastecer nossos corpos e intelectos, e assim seguirmos nossa jornada de reflexões, aprendizados e criações.
A busca pela compreensão do processo de racialização dos nossos corpos na cena e no mundo, não é tarefa fácil. Os registros encontrados, a ordenação das narrativas históricas, e seus desdobramentos corporais, não se dão de maneira linear… Tão pouco os pensamentos/ações que regem a pesquisa de linguagem dessa companhia que aqui vos fala.

Portanto caros amigos e amigas, não criamos nosso grupo de estudos como lugar para entregar ou obter respostas. Estamos muito mais interessados na fricção que o encontro de diferentes ideias, autores, corpos, danças, vidas e universos nos proporciona. O aprendizado que vêm pelas linhas tortas, pelos cantos, pelos caminhos não evidenciados, pelas vozes nem sempre escutadas e pelas palavras nem sempre escritas, nem sempre faladas.
Buscamos a confluência das contradições e da não obviedade. Buscamos o aprendizado no eco dissonante das nossas histórias.

Faremos agora, um breve panorama apresentando algumas memórias “recentes” do primeiro encontro dos nossos Estudos Compartilhados “Saberes em Rede”. Para adentrarmos nessas memórias, creio que seja necessário reconstruir a ponte que nos leva a “QUENUAL”, projeto que se propõe a refletir sobre nossa integração com a América Latina e encontros com os países do Caribe.

No entanto, para chegar em tal ponto, julgamos necessário contextualizar nossa trajetória até aqui, para que possamos saltar sobre nossas pesquisas que até este momento evidência corpos afro-indígenas brasileiros e agora busca por uma compreensão mais ampla e integral do que somos, fazemos e como nos relacionamos enquanto Améfrica, termo cunhado pela intelectual Lélia Gonzalez, que neste projeto entendemos como uma importante fonte para saciar nossa sede. Bem, este é um lugar que chegaremos nos próximos encontros…

Neste primeiro momento, gostaríamos de contar um pouco sobre nossa trajetória enquanto artistas. O que nos leva a parceria com o Instituto Brincante, local simbolicamente escolhido para abrir os caminhos desta edição dos nossos Estudos Compartilhados, e gentilmente cedido pelos fundadores e gestores desta importante instituição cultural da cidade de São Paulo.

Em 2011, antes mesmo da Cia Pé no Mundo existir tal como se configura hoje, os fundadores e diretores da Cia Pé no Mundo – Cláudia Nwabasili e Roges Doglas-, se conhecem no projeto de criação da Cia de Dança de Antônio Nóbrega. Ali, atuando como bailarinos, permanecem por três anos, e muito impactados pela pesquisa proposta por Antônio Nóbrega, começam a tecer suas próprias ideias sobre esse corpo brasileiro. Contudo, anos depois compreendem empiricamente que esse “corpo brasileiro”, são muitos corpos. Entre eles, corpos pretos racializados, que possuem diversas marcas e leituras sociais. O que cenicamente resulta em específicos signos, carregados de diversas significações. Nessas indagações surge a Cia Pé no Mundo. Assim, embalados pelo rio dessas memórias, também surge o tema para o primeiro encontro dos nossos Estudos Compartilhados: QUE CORPOS SÃO ESSES? DANÇAS POPULARES E DANÇAS CÊNICAS NO BRASIL.

Como prática recorrente da Cia, nossos estudos se configuram num hibridismo entre as reflexões verbais escritas/faladas e reflexões dançadas. Nesse sentido, contamos sempre com a participação de Mariana Queen Nwabasili, jornalista, pesquisadora e doutoranda pela ECA-USP. Mariana contribui intensamente na construção do pensamento/ação da Cia Pé no Mundo, que para compreender seus desejos, questionamentos e conceber suas investigações e pesquisas em dança, direciona seu olhar para outras linguagens artísticas e outras áreas dos estudos.

Neste primeiro encontro, fizemos essa travessia de ideias passando pelos estudos do cinema, área específica de atuação da jornalista Mariana Queen. Que trouxe como entradas possíveis, reflexões sobre:

1) Formação do povo brasileiro;
2) Diferença versus alteridade;
3) Democracia racial;
4) Colonialismo – racialização – racismo – divisão racial do trabalho e exploração racializada
do trabalho;
6) Relações hierárquicas e desiguais de raça no país;
6)Formas de resistência e afirmação racial e identitária;
7)Identidade nacional e Artes.

Chegando em Identidade nacional e Artes, “emprestamos” parte do arco histórico do Cinema Brasileiro como exemplo inserido numa “história longa” “da busca da identidade nacional [nas artes do país, que] atravessou
todo o século XX”, RIDENTI, M. “Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960”. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, v. 17, n. 1, junho de 2005.

Neste primeiro encontro também apreciamos trechos dos filmes:

“Barravento” (Glauber Rocha, 1961)

“Terra em transe” (Glauber Rocha, 1967)

“Alma no olho” (Zózimo Bulbul, 1974)

“Retrato em Branco e Preto” (Joel Zito Araújo, 1992)

Trançando um interessante paralelo com os estudos abordados na facilitação proposta por Mariana Queen, os diretores da Cia Pé no Mundo Cláudia Nwabasili e Roges Doglas, apontam um importante recorte da história das Danças Cênicas no Brasil como exemplo. Partem de uma análise técnica sobre as pesquisas corporais e estudos sobre a narrativa histórica de Mercedes Baptista (1921-2014).

No entanto, voltando para a potência da não linearidade da nossa existência, para falar de Mercedes Baptista precisamos “sair” do Brasil – assim como acreditamos que para falar de dança, precisamos “sair” da dança – Chegamos em Katherine Dunham (1909-2006), coreógrafa e bailarina criadora da Técnica Dunham, autora,antropóloga e ativista social nascida nos EUA. Figura importantíssima para os estudos de Mercedes Baptista.
Corporalmente, no primeiro encontro dos nossos Estudos Compartilhados, trabalhamos a partir da técnica de dança moderna cunhada por Katherine Dunham, com forte influência das danças tradicionais Afro-haitianas, por este trajeto chegamos às codificações das danças afro-brasileiras de Mercedes Baptista. Importante mencionar que Cláudia Nwabasili e Roges Doglas, estiveram recentemente em Paris/França, onde iniciaram um
projeto-pesquisa na residência artística Cité Internationale des Arts em Paris, por meio do projeto Brasil Cena Aberta em parceria com a Prefeitura de Paris e o Consulado da França. Neste período, tiveram a oportunidade de aprofundar seus estudos corporais nessas técnicas a partir da pesquisa de Eneida Castro.Bailarina e coreógrafa brasileira radicada em Paris, falecida em 2020. Eneida Castro, desenvolveu sua própria metodologia de trabalho, e dedicou-se a manter vivo o legado de Mercedes Baptista e Katherine Dunham. Em Paris, tivemos a maravilhosa experiência de estudar com dois discípulos de Eneida Castro. Kathy Manyongo ex- bailarina da Companhia de Eneida Castro e Jean-Michel Frénéa, ex assistente e atualmente professor responsável por dar seguimento a escola técnica de Eneida.

Nos passos e descompassos das histórias, construímos nossas danças. Em breve mais materiais chegarão por aqui!
Fiquem atentos e CAMINHEM DANÇANDO CONOSCO!

Cláudia Nwabasili